outubro 11, 2003

O BLUES RURAL E COREY HARRIS



Na quarta-feira passada eu tive o derradeiro insight a respeito de como determinados tipos de música realmente perdem sua mística no formato CD. Na Fnac, pude assistir ao vivo um emocionante pocket show com um cara bacana chamado Corey Harris, que tocando apenas três músicas, só voz e violão, foi mais emocionante que todos os grandes shows e festivais de blues que eu já vi. Ele terminou com duas belíssimas músicas africanas, que devem estar em seu CD Mississipi to Mali a ser lançado em novembro, e começou com um blues rural que arrancou lágrimas até do macho-durão do meu irmão!

Apesar de Harris ter apenas 34 anos, o que nós víamos e ouvíamos era um eco colorido e palpável de um passado muito remoto, e, apesar de estarmos no meio de um prédio modernoso em Pinheiros, São Paulo, fomos arremesados para os anos 1930, no Mississipi.

Nesse blues, cujo o nome eu desconheço, Harris provocava com voz bela, ancestralmente rouca e acima de tudo negra. Apesar de estar uivando um blues, havia no seu canto um quê de soul music, principalmente nos falsetes. No violão, Harris misturava estilos. Havia estilingadas nervosas e rurais à Son House mescladas ao dedilhado ganchudo como um ferrão de abelha de Bob Johnson. Havia muito mais que ondas sonoras no ar daquela sala naquele momento, era como uma hipnose coletiva, um choque ao mesmo tempo doce e triste, uma perplexidade, ninguém sequer respirava para poder ouvir os mais ínfimos timbres, as mais sutis emanações daquele homem.

Harris é um grande guitarrista a serviço da música com alma. Além de bluesman temporão, é também um pesquisador e experimentador de todo o espectro estilístico registrado pela música negra e folk estadunidensse. Baixei todos os discos dele e pude constatar que o cara tem uma obra séria e de qualidade ímpar. Também me dei conta que essa música não é a mesma música quando esta num MP3 de trilhões de Kbps ou num CD. Talvez, o vinil seja algo mais próximo. Mas a verdade, mesmo, está na garganta daquele moço, no aço das cordas e na madeira do seu violão.

Martin Scorsese's "Feel Like Going Home"

Não é por acaso que o diretor Martin Scorsese escolheu usar Corey Harris como mestre-de-cerimônias do seu documentário Feel Like Going Home. Filme imperdível pra quem gosta de música. Scorsese faz sua homenagem ao Blues do Delta do Mississipi a partir de uma peregrinação de Harris que tem início nos rincões daquele estado e depois vai buscar suas raízes musicais intactas em Mali, na Africa Oriental, até concluir voltando para os EUA. Scorsese e Harris encontram pretos velhos esquecidos pela história, que conviveram com grandes mestres do Blues, e contam seus causos e falam de suas técnicas e de suas almas pentatônicas. Também visitam os irmãos africanos, suas histórias, sua música prima, sua poesia e sua atitude de respeitosa reverência nobre.

Tudo isso é muito emocionante no filme, uma máquina do tempo cultural. E não menos importante que as impressionantes imagens raríssimas que Scorsese nos apresenta: registros de Leadbelly, Son House, Muddy Waters e John Lee Hooker. Isso pra não falar dos impressionantes sons e imagens raras de um trio de homens tocando nos confins duma roça do Delta numa banda de pífanos bluesy (uma flautinha de bambu e duas caixas de percussão), que inicia o filme. Acaba parecendo um elo perdido que conecta toda a música negra da África ao continente americano, pois é assustadoramente semelhante às folias de reis brasileiras, bem como manifestações ainda vidas na África Oriental (que também aparecem no filme) e também no Mississipi.

Mas não bastava Scorsese e Harris lavarem a alma com seu cinema e música. Aquela noite de quarta-feira foi uma dádiva rara. O filme era de graça, bastava se inscrever para assisti-lo. Você ainda ganhava de brinde o primeiro CD da trilha sonora da série The Blues e, pra quem gosta, tinha até whisky 12 anos de cortesia à vontade. Por fim, antes do pocket show de Harris, houve uma instigante conversa entre Harris e o guitarrista brasileiro André Cristovam, que se mostrou um cara super inteligente, tanto pelos cometários procedentes, quanto pelo trabalho de intérprete de Harris (esse falava por vários minutos, tecia comentário bastante longos e cheios de informação diferente e então Cristovam traduzia tudo para o público, quase que palavra por palavra).

Martin Scorsese's "The Blues"

Se você é paulista e se acha um cara esperto, prove. Você ainda tem a chance de assistir a Feel Like Going Home, pois acho que vai passar no festival de cinema de São Paulo.

Além disso, acho que ainda dá tempo de se inscrever para assistir de graça na Fnac aos outros seis filmes da série The Blues. Nem todos são documentários e todos são produzidos por Scorsese por conta de 2003 ser o Ano do Blues (em comemoração ao centenário de W.C. Handy), porém dirigidos por nomes de peso como Win Wenders (Buena Vista Social Club) e Clint Eastwood (Bird). Os filme vão rolar sempre às terças-feiras, às 19 horas, até novembro, sempre com algum bate-papo e pocket show na sequência. Saca só a seleção:

The Soul of a Man por Wim Wenders
The Road to Memphis por Richard Pearce
Warming by the Devil's Fire por Charles Burnett
Godfathers and Sons por Marc Levin
Red, White & Blues por Mike Figgis
Piano Blues por Clint Eastwood

Curiosidade: Descobri que o bluesman Corey Harris contribui com sua maravilhosa guitarra ao lado do grande bardo punk inglês Billy Bragg no disco Mermaid Avenue, em que Bragg musicou letras de Woody Gutrhie a pedido da bisneta de Guthrie!